A Guerra como experiência e reflexão

Artigo de opinião escrito pelo professor António Caselas


Coube ao escritor Ernst Jünger relatar a sua vivência do horror da Primeira Guerra Mundial no seu livro A guerra como experiência interior. Relato, porventura, mais literário (poético) do que próximo de uma apurada reflexão ‘cerebral’ que só encontramos no pensador e jurista Carl Schmitt.

No seu texto O conceito do político, Schmitt coloca a distinção entre o ‘amigo’ e o ‘inimigo’ no cerne da estruturação da política. Trata-se de uma separação conceptual e não uma diferenciação de circunstância que possa servir para efeitos de relacionamento diplomático e para alimentar a dinâmica de jogos de poder. Não encontramos aqui a teatralização das relações internacionais e a encenação geopolítica que hoje associamos aos amigos ou inimigos, sejam figuras estáveis ou móveis. Os falsos amigos e os que já o foram verdadeiramente enquadram-se nesse contexto relacional que Schmitt despreza quando estabeleceu o seu par conceptual ao qual pretendeu dar uma inequívoca profundidade.

A mobilidade do ‘estatuto do amigo’ tem-se imposto declaradamente depois da posse do ‘falso amigo’ do Ocidente, D. Trump. Mas, neste caso, continuamos ainda imersos na comédia do mundo já que, provavelmente, deparamos com uma provisória perversão ou alteração (ainda que aparentemente substancial) do relacionamento antigo entre os Estados Unidos e o resto dos países que fazem parte da categoria de ‘mundo ocidental’. Mas quem é o amigo e o inimigo?

As guerras ajudam a estabelecer a aparente radicalidade da separação e das terríveis consequências existenciais dessa separação. Na experiência bélica, o confronto com o inimigo é letal. Trata-se de matar ou morrer, mesmo que um dos lados tenha mais legitimidade para matar do que o outro. O inimigo mortal é uma figura lapidar e granítica? Quase eterna e incontornável? A inimizade mortal que separa os russos dos ucranianos e o ódio que tem crescido entre os iranianos e os israelitas é essencial e deve conduzir ao confronto de vida ou de morte até ao colapso de um dos beligerantes? São figuras de metal que nada pode amaciar? Com uma radicalidade intransponível?

Nem por isso. São confrontos mais contextuais do que essenciais. O genocídio do Ruanda (entre outros) prova isso. Os hutus fanatizados massacraram todos os tutsis, twa e hutus moderados que puderam encontrar aleatoriamente durante 100 dias. Vizinhos chacinaram vizinhos, antigos conhecidos ou amigos perseguiram os seus semelhantes para os massacrarem. Sem saberem a razão, ou sem qualquer razão, hordas de assassinos dirigiram-se indiscriminadamente aos seus compatriotas para os abaterem selvaticamente.

Em pouco tempo, quase 1 milhão de pessoas foi executada impiedosamente. Hoje, o assassino convive com a vítima que não conseguiu liquidar. Os vizinhos reencontram-se sem que ocorra um homicídio ou uma matança indiscriminada de todos os familiares. Foi como uma névoa, um pesadelo que parece não ter ocorrido na ‘vida real’. Foi uma breve purga que custou a vida a milhares de pessoas sem nenhum fundamento válido. Mas isso não significa que outras guerras, as que ocorrem em África, na Ásia, Médio Oriente e na Europa, sejam esporádicas loucuras e terríveis matanças sem sentido. Há razões que a história explica.

Mas o inimigo continua granítico e ergue-se como uma figura inquebrantável? Parece que não. Continua a ser uma figura construída pela ‘loucura’ dos humanos que insistem em ceder aos seus ímpetos selvagens. Existem motivações ideológicas e culturais, raízes históricas e ódios antigos, mas só a irracionalidade os mantém. Esperemos que essa irracionalidade não seja a verdadeira essência do humano, senão tudo se complica.

 

 

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