"A Eneida", de Virgílio, séc. I a.C.



Uma das regras de ouro da literatura clássica é: poesia é imitaçãoA Eneida, de Virgílio, é a epopeia que sustenta e justifica a civilização romana, escrita no século I a.C., sob influência direta de Homero. Constituída por doze livros, esta obra centra-se nas aventuras de Eneias, herói troiano destinado a fundar a linhagem que originaria Roma. A epopeia combina elementos míticos, históricos e ideológicos, servindo de instrumento de legitimação do Império Romano, especialmente sob o governo de Augusto.

Como nas epopeias clássicas, a Eneida apresenta os traços típicos do género épico: texto em verso, um herói de estatura grandiosa, invocações às musas, intervenção dos deuses, viagens perigosas, batalhas, discursos solenes e um enredo que articula o destino individual com o coletivo. Um episódio central é a catabase, a descida de Eneias ao mundo dos mortos, no Livro VI. Esta jornada ao Hades permite ao herói reencontrar o pai, Anquises, e conhecer o futuro glorioso de Roma. A catabase simboliza o confronto com o passado e a aceitação de um destino transcendente, oferecendo ao leitor uma visão moral e política da missão do herói e dos romanos, fundando-se a chamada pax romana, ideia segundo a qual todos os povos deveriam aceitar submeter-se pelas maravilhas da civilização romana.

Comparando com Os Lusíadas (1572) de Luís de Camões, nota-se uma clara inspiração virgiliana. O primeiro verso do poeta português é um decalque do primeiro verso da Eneida:
«Arma virumque cano…», ou seja, Eu canto as armas e o homem
O primeiro d’Os Lusíadas quase toda a gente sabe de cor!
«As armas e os barões assinalados».

Esta é daquelas fontes evidentes, mas há outras que não cabe agora explorar aqui num texto breve. Apenas mais dois apontamentos.

O certo é que Vasco da Gama, figura central da epopeia lusitana, também embarca numa missão fundadora: dar novos mundos ao mundo. Camões adota a estrutura épica clássica, dividindo a obra em 10 cantos, (a Eneida tem 12 Livros) mas adapta-a ao contexto português do século XVI, celebrando os Descobrimentos e desse modo aproveita para visitar episódios variados da nossa história passada e alguma futura. Na verdade, tal como a Eneias é dado a conhecer a sucessão de feitos dos Romanos desde a fundação ao Império, com Roma no centro, como cidade eterna, Camões substitui a catabase (descida aos infernos) pela anabase (subida a um monte, para ver a Máquina do Mundo) que ocorre no Canto X, na Ilha dos Amores, a Ínsula de Vénus, essa magnífica invenção camoniana, cujo prémio atribuído aos nautas lusos é o amor. Tétis guia Vasco da Gama e mostra-lhe os futuros domínios de Portugal, onde a dimensão mitológica e alegórica é empregue para exaltar o destino imperial português.

Virgílio e Camões (mais de 1500 anos depois) usam a épica para construir uma identidade nacional e glorificar o seu povo, elevando os feitos históricos a uma dimensão mitológica, através da mescla entre realidade e fantasia, razão e fé, indivíduo e pátria com missão civilizadora.

Li a Eneida por indicação e obrigação escolar. Quem estudava Latim no secundário tinha obrigatoriamente de a ler e até traduzir fragmentos que davam imenso trabalho e, agora digo menos desassombrado, um prazer imenso. Os primeiros seis livros lêem-se muito bem, com episódios cativantes: a fuga de Troia, a rainha Dido, Eneias nos Infernos; já os restantes livros são muito bélicos com as implicações de leitura que daí advêm. Há várias edições, incluindo uma versão adaptada para jovens como acontece com a Ilíada, a Odisseia e Os Lusíadas. Há edições integrais inclusivamente com texto original em latim e a tradução para português.

Boas leituras!

 

Texto escrito pelo professor Jorge Marrão

 

 

Adicionar comentário

Comentários

Ainda não há comentários.