Artigo de opinião escrito pelo professor António Caselas, AE de Santa Catarina

O sucesso depende do mérito. Subir na escala social e profissional de acordo com o mérito. Expressões que soam bem. Que parecem decorrer de evidências, mas as coisas não são tão simples.
Na verdade, nunca são. Vários pensadores demonstraram isso mesmo. Destaquemos um deles: Michael Sandel que no seu livro, A Tirania do Mérito (Ed. Presença 2022) mostra que, verdadeiramente, o que soava bem se pode revelar problemático. O mérito deve ser relacionado com noções e realidades diversas. Deve ser pensado em relação estreita ou indireta com a questão da igualdade, justiça, desigualdade, liberdade, individualismo, bem comum, entre outras.
A velha sentença ‘No man is an island’ ilustra bem a questão do mérito, do problema do seu enaltecimento e da sua veneração unilateral. O mérito depende de múltiplos fatores e contextos. É condicionado por muitas entidades e circunstâncias. A abordagem individualista e atomística do mérito constitui o erro de base da meritocracia. Ninguém acede a uma posição privilegiada apenas por mérito ou por ‘mérito próprio’. Essa é a ilusão que permite desmascarar a meritocracia. Variáveis incomensuráveis, inesperadas e incontroláveis o ‘determinam’. A mais escorregadia de todas, a sorte, também deve ser tida em conta.
Da imposição de uma visão da sociedade em função do mérito decorrem até equívocos que nem sequer é muito difícil de desconstruir: o mérito depende apenas da ação de cada um, das suas capacidades e do seu empenho. Falso. E quem não o possuir, diz-se, é um ‘perdedor’. Só pode culpar-se a si mesmo. O mérito forja vencedores, homens e mulheres de sucesso. O exemplo da dimensão económico-financeira é apontado como o mais flagrante indicador do sucesso que depende do mérito de cada um, ou que depende essencialmente do mérito de cada um.
Num contexto histórico em que o chamado capitalismo deu lugar ao neoliberalismo essa asserção é, objetivamente, falsa. Aqueles que obtiveram um sucesso incomparável e global (como os fundadores das plataformas tecnológicas) devem muito aos apoios estatais. Ao aparelho legislativo e funcional do chamado ‘sistema’.
Sandel também mostra o lado perverso da meritocracia: a culpabilização dos ‘perdedores’. O desprezo pela prossecução do bem comum, pela igualdade relativa, solidariedade e justiça social. Isolar o mérito apenas favorece um entendimento abstrato da sociedade e do percurso individual dos cidadãos. Esse modo de ver a lógica da existência social é contrário do que poderíamos designar como o bem comum. Se este bem é, muitas vezes, difícil de concretizar e objetivar, não é confundível com uma total abstração.
O mérito deve ser tido em conta, mas sem gerar atropelos, equívocos e culpabilizações. Deve inserir-se numa lógica sociopolítica em que concorrem também os princípios de justiça e solidariedade. Valorizar o mérito não significa pensar em função da sua hegemonia ilusória e injusta. Para Sandel, «Focar-se apenas, ou predominantemente, na mobilidade ascendente pouco faz para cultivar os laços sociais e de solidariedade cívica de que a democracia necessita. Mesmo uma sociedade mais bem-sucedida em termos de mobilidade ascendente do que a nossa também deve encontrar formas de permitir que aqueles que não ascendem possam prosperar na posição em que se encontram e sentir-se como membros de um projeto comum.» (pag. 261)
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Comentários
👏👏👏
Que existem pessoas com enorme mérito, que ascendem profissional e socialmente, existem, e fazem por isso!
Que muitos têm igual mérito, mesmo sem, aparentemente, acederem a "um lugar ao sol", também é uma realidade!
Como diz, e bem, o professor Caselas, o "...mérito depende de múltiplos fatores e contextos" e "...deve ser relacionado com noções e realidades diversas".
E, depois, sem querer privilegiar as teorias da conspiração, não se pode negligenciar a "percepção" de que existem "ascensões meteóricas" resultantes de teias de relações e favores, não tanto de genuíno mérito.
Mérito absoluto, indiscutível, aqui sim, ao professor Caselas, ao Catarino, ao AE de Santa Catarina! 👏